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Lula Côrtes, um artista atravessador de poiesis – Felipe Aretakis

As décadas de 1960 e 1970 marcaram a cena cultural pernambucana pela mobilização de registros artísticos que até então destoavam da estrutura simbólica predominante. A representação do “popular”, a partir da matriz ético-estética Regionalista, por exemplo, ainda perfazia boa parte da produção artística local tanto nas dimensões do saber quanto do fazer. Outro agenciamento para o mesmo conceito era posto em discussão e praticado por artistas e intelectuais ligados ao campo ideológico das esquerdas haja vista o regime de exceção instaurado no país desde 1964. Todavia, com o surgimento dos primeiros grupos de jovens artistas e intelectuais de vanguarda, especialmente em finais de 1960, a produção cultural pernambucana passou a ser negociada também a partir do universo simbólico da Contracultura.

A primeira expressividade artística de rompimento com a tradicional cultura local foi a representação tropicalista operada por artistas e intelectuais de Pernambuco, da Paraíba e do Rio Grande do Norte. Movimento classificado pela historiografia como Tropicalismo Pernambucano e que com dificuldades – embora com muita agitação e carnavalização, como diziam os próprios tropicalistas – ultrapassou o biênio 1967/1968 até às margens de 1970. Os tropicalistas puseram em questionamento a identidade cultural nordestina promovendo uma visão mais aberta e plural para a arte produzida nesta região bem como através de práticas artísticas como o experimentalismo e a performance criaram novos paradigmas de expressão. Menos iconoclasta, a segunda expressividade artística buscava através da linguagem liberalizante do corpo e da mente unir elementos do local com o universal para dar vida a um saber-fazer peculiar em termos de psicodelia.

A Psicodelia Nordestina, como mais tarde viria a ficar conhecida, marcou a década de 1970. O chamado “Udigrudi Pernambucano” construiria suas bases especialmente no campo musical, despontando como um território fecundo para a transgressão da juventude recifense. Tanto o imaginário simbólico quanto a abertura para novas dissipações vivenciais, ligadas em primeira instância aos modos de ser do movimento hippie – aqui havendo destaque para a experimentação lisérgica e para a experimentação estético-comportamental – e em segunda instância à revolução sexual, foram agenciados pela juventude local ávida por liberdade. Do encontro desses jovens resultaria a formação de diversas bandas, tais como a Tamarineira Village – reconfigurada mais adiante como Ave Sangria – Nuvem 33, Flaviola e O Bando do Sol, Phetus, entre tantas mais, bem como de espaços de confabulações criativas tais como a Casa Abrakadraba, o Beco do Barato e a Galeria 3 Galeras.

A Casa Abrakadabra era o QG da contracultura à época. Tratava-se da residência do casal Lula Côrtes e Kátia Mesel, localizada em Apipucos. Entusiastas do rock’n roll e do mundo das artes de maneira geral, ambos haviam transformado a própria casa em território de encontro para os músicos, artistas e também amigos de desbunde que para lá acorriam com o intuito de potencializar suas trocas criativas. Nesse ambiente de efervescente liberdade e de democratização do saber musical surgiu o projeto Selo Solar, uma espécie de produtora independente, que passou a pensar e produzir a programação visual dos discos daquela geração psicodélica. Tanto assim que a produção fonográfica mais emblemática da época carregava não somente em suas capas como também em sua musicalidade a concepção cosmogônica dos que faziam o grupo Solar: Satwa, 1972; Marconi Notaro no Sub Reino dos Metazoários, 1973; Paêberú: o caminho da Montanha do Sol, 1975; Flaviola e o Bando do Sol, 1976.

Lula Côrtes era um artista solar; de natureza inquieta, que atravessava com trans/lucidez as poiesis artísticas. Já em 1972, Celso Marconi, jornalista encarregado do Caderno de Cultura do Jornal do Commercio e Tropicalista por transgressão cultural – que o digam os dias de errância da Pernambucália – havia classificado Côrtes como “poeta/pintor, desenhista e outras transas mais”. Àquela altura, o jornalista do JC fazia referência à produção visual lançada por Côrtes sob forte inspiração orientalista e surrealista através da transfiguração dos signos do zodíaco. Segundo informações levantadas por José Teles em seu icônico livro “Do Frevo ao Maguebeat”, à época Lula Côrtes se dedicava “à pintura, compulsiva, de telas e desenhos com influências surrealistas, adquiridas, segundo ele, do próprio “mestre”, o catalão Salvador Dali”. Essa estória e tantas outras, Côrtes contava com empolgação a todos de seu círculo de amizade, pois havia retornado repleto de experiências e desventuras de uma viagem que fizera da Espanha ao Marrocos.

Assim era Lula Côrtes, uma persona artística de múltiplas reverberações, nem tanto surrealista nem tanto orientalista nem tanto rock’n roll nem tanto concretista, não no sentido da não dedicação a um campo do sensível, enquanto identificação profissional e construção intelectual, mas por projeção de um “Eu” essencialmente antropofágico e desviante. Nesse sentido, não cabe observar a produção visual de Lula Côrtes – em seus variados momentos de vida – tão somente pelas concepções estéticas e epistemológicas dos modernismos e suas recepções locais, mas, sobretudo, a partir de uma perspectiva pulsional e sintomática. Qual o lugar onde a arte visual de Côrtes arde? Onde ela faz sintoma? Dentro deste entendimento, talvez seja nos detalhes que devamos buscar interpretar o “poeta/pintor”. Ao não se encaixar ou se esquadrinhar nos códices exigidos pelas estruturas legitimadoras das artes vigentes à época, Lula Côrtes não se transformava automaticamente num não-artista visual, ao contrário, operava sua produção num transbordamento criativo para além de “outras transas mais”, como afirmava Celso Marconi.

Lula Côrtes era uma espécie de guru de sua geração, por isso podemos pensar que sua poiesis tenha se desenvolvido numa perspectiva de “atravessamento” – entre a poesia, a pintura, o desenho, a música e a transgressão – o que significa dizer que sua arte não tem bordas; ela se espalha e se confunde perfazendo um arco referencial verbo-voco-visual de suas identidades artísticas.    


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