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Curadoria Atípicos e seus desvios cromáticos – Joana Darc Lima

A obra visual de Lula Côrtes, paralela à sua obra musical, transita por aí, por esta vertente que parece ser a coxia do grande palco do mundo – ele é conhecido como artista do palco. Mais ainda: ela transita pelo seu mundo interior, por seus abismos, sua poesia bárbara e brilhante que se confunde com sua maneira de ser, seus signos próprios, seus meios e modos de se relacionar com a vida e com o outro. (Raul Córdula)

A curadoria dessa exposição virtual pretende apresentar ao público parte da série de pinturas intitulada Atípicos, de autoria de Lula Cortês, que está contida em acervo particulares – uma rede de amigos, sustentada por amores, paixões e muita amizade – que foi acionada por meio da realização de uma investigação que derivou em uma série de atividades, ações e sobretudo uma pesquisa a acerca da produção plástica do artista multidisciplinar Lula Cortês. Um dos resultados da pesquisa derivou no mapeamento – registro fotográfico e construção de uma ficha catalográfica – da sua obra visual que está reunida em diversos acervos privados. 

A investigação que se desdobrou para realizar esse mapeamento partiu de algumas perguntas levantadas inicialmente pelo grupo de pesquisadoras, a saber: Quais os termos de referências que sustentam o rótulo atribuído a Lula Cortês de multi-artista? Qual lugar a crítica de arte colocou sua obra visual e qual foi o lugar que essa mesma narrativa crítica projeta para ele: o surrealista? O marginal? O multiartista? Como Lula Cortês cria? Quais seus impulsos para a invenção de uma obra visual, sobretudo a pictórica? Quais as redes de circulação de seus trabalhos visuais? Entre suas criações sonoras, visual e verbal há uma interrelação das poéticas tratadas?  Entre outras questões que foram surgindo ao longo da nossa convivência como grupo de pesquisa.

Nessa exposição virtual apresentamos a série Atípicos, também título do projeto de pesquisa que investigou alguns acervos privados. Os acervos visitados foram os seguintes: acervo de Avir Mesel Côrtes e Kátia Mesel, acervo de Manuel Cesário Ferreira Pinto e acervo de Alcione Móes e Nemo Móes Côrtes. Com base nas visitas para a construção do mapeamento as obras foram catalografadas e fotografadas –  como podem verificar na sessão Mapeamento. Foram realizadas entrevistas às proprietárias e com Cesário. Nessa exposição virtual daremos destaque especialmente para a série Atípicos presentes nos acervos mencionados. Decidimos exibi-las pelos desvios cromáticos, no sentido de construir uma espécie de tipologia da cor: os desvios para os vermelhos, para os verdes, para os azuis, para os ocres e ainda aquelas que explodem nos diversos cromatismos. A cor existe pois é pura retenção da luz. Ao percorrer Atípicos por essa narrativa talvez cheguemos próximas da maneira como o artista capturava o mundo ao seu redor: das miudezas da vida, como a luz que incide sobre a paisagem e produz a fotossíntese, o nascimento, o crescimento e a mutação. Lula Cortês nos parece ter valorizado essa natureza orgânica das coisas do mundo: da germinação ao florescimento.   

Ao percorrer essas imagens reunidas pela aproximação cromática queremos fazer notável a chama que arde na proposta pictórica desse artista atípico: atípico para as normas e regramentos de uma sociedade do controle dos corpos, da sexualidade, da criação. Um corpo atípico nos palcos e na vida cotidiana. Lula Côrtes, um artista plástico pouco convencional para se adequar ao campo das artes e as suas regras. Que lugar poderia ocupar esse artista nesse campo artístico? Difícil imaginar. Um andarilho entre as fronteiras e um fundador de trilhas às margens do que se nomeava como centro. 

Lula Cortês nos parece que também não fazia concessões para poder se enquadrar nas disputas presentes no campo das artes na época e tão pouco cumprir alguns pré-requisitos impostos para as e os artista de sua época que se consagravam, talvez seja por sua atitude atípica ao campo das artes que Lula tenha percorrido com mais aceitação o campo da música: menos elitista que o campo das artes. Lula Atípico Côrtes: irregular, anômalo, divergente, diferente, diverso, raro, singular, incomum. 

Sua série Atípicos parece ter nascido de suas entranhas, do seu interior, da sua sexualidade e sensualidade, ou seja, da pulsão de vida, da potência da vida e certamente da morte, como nos aponta em reflexão Friedrich Nietzsche: os riscos de ir a fundo para dentro e para os nossos abismos: se colocar à beira da falecia. Atípicos de Lula Cortês  desenha por meio de linhas orgânicas e fluidas esse movimento da vida, percebemos o rigor formal e técnico do seu desenho: excelente desenhista. Ao usar as tintas o artista corre um grande perigo de não controlar seu uso e deixar os acasos romperem o controle técnico e esmaecerem-se à vontade ao movimento da própria matéria deixar suas marcas. Exercício difícil para um artista que se dispõe ao uso dessa linguagem. Nesse sentido, pode-se afirmar que é no jogo experimental entre a ordem (razão ou Apolíneo) e o acaso (intuição ou Dionísio) que o artista caminha em sua criação. 

Um outro dado importante que marca a produção visual de Lula Cortês (trabalhou com as artes gráficas – desenho, pintura, livro de artista) é como sua obra representa uma geração e a condição histórica na qual o artista estava imerso. Os anos 1970 produziram em Lula Cortês uma tatuagem (marca) na pele que ele a carregou por toda sua existência. Uma visão de mundo de parte de uma geração que caminhando a contrapelo do estabelecido produziu uma ética poética – um estilo e uma maneira de viver cuja uma nova sensibilidade era produzida e se conectava ao que ficou conhecido como experimentalismo na arte. O crítico Raul Córdula soube resumir bem essa experiência contracultural na cidade do Recife que Lula soube traduzir, cito: 

Mas ninguém desenhou melhor o estado de espírito do Recife dos anos 1970 do que Lula Côrtes. Além de desenhar ele versejou, musicou e editou. Na verdade, nas décadas de sessenta e setenta Lula não trabalhou só, Kátia(Mesel) foi sua musa e sua força. Ela projetou uma estética associada à precariedade, com edições de livros e discos que partia do papel barato ou da sobra da gráfica, mas que atingia um encanto jamais superado pelos designers daqui. Os textos, ideias e desenhos de Lula eram magistralmente integrados aos projetos gráficos de Kátia. (…). Os desenhos que ele fazia nos anos 1970 possuíam uma alma psicodélica. Mas não eram repetições copiadas de revistas americanas, seus traços fluíam com uma elegância e uma habilidade sem par. (…) Lula Côrtes, como Jorge Tavares, Zé Tavares, Rodolpho Mesquita, Rodolfo Aureliano e Humberto Magno, faz parte dos malditos, os angelicais artistas malditos que fogem de todas as regras e se revelam ao mundo como profetas de novas luzes. Demônios do bem, anjos do mal, estes artistas sempre estiveram além do próprio tempo, do eterno agora. (Raul Córdula)

Todos atípicos para seu tempo. Alguns desses citados, assim como Lula Cortês, já se encantaram. Todos com suas identidades artísticas próprias têm essa marca do seu tempo em seus trabalhos. Desta forma parte da série Atípicos que ora vem a público nessa exposição virtual deseja revelar ao público o quão vigorosa, rigorosa e porosa é a criação visual desse artista inquieto com seu próprio tempo e com ele mesmo. Pretendemos mostrar também o quão habilidoso era o artista visual Lula Côrtes. Desde menino sua principal maneira de expressar-se passou pelo desenho: o desenho era e foi seu gozo nas artes visuais e na vida. Como um cartógrafo que envereda por descrever através de desenhos territórios, Lula por meio de seu desenho estruturado, vigoroso e descritivo nos cartografa a si, seu entorno, seu tempo e a própria criação e mutação que é a vida. 

Sobre a Pesquisa: caminhos trilhados

A pesquisa desenvolvida ao longo de aproximadamente um ano de trabalho (em plena pandemia) pretende apresentar ao público parte da obra visual de autoria de Lula Cortês, que está contida em acervos particulares – uma rede de amigos, sustentada por amores, paixões e muita amizade. A investigação que derivou em uma série de atividades, encontros, ações e sobretudo numa pesquisa a acerca da produção plástica do artista multidisciplinar Lula Cortês. Um dos resultados da pesquisa derivou no mapeamento – registro fotográfico e construção de uma ficha catalográfica – da sua obra visual que está reunida em diversos acervos privados. A investigação que se desdobrou para realizar esse mapeamento partiu de algumas perguntas levantadas inicialmente pelo grupo de pesquisadoras, a saber: Quais os termos de referências que sustentam o rótulo atribuído a Lula Cortês de multi-artista? Qual lugar a crítica de arte colocou sua obra visual e qual foi o lugar que essa mesma narrativa crítica projeta para ele: o surrealista? O marginal? O multiartista? Como Lula Cortês cria? Quais seus impulsos para a invenção de uma obra visual, sobretudo a pictórica? Quais as redes de circulação de seus trabalhos visuais? Entre suas criações sonoras, visual e verbal há uma interrelação das poéticas tratadas?  Entre outras questões que foram surgindo ao longo da nossa convivência como grupo de pesquisa. 

A pesquisa caminhou pela formação em diálogo compartilhado com pesquisadoras e pesquisadores das artes visuais, da história, da sociologia, da música. Também fomos atravessados por algumas leituras objetivando nos aproximar dessas perguntas supracitadas e da condição histórica na qual Lula Cortês estava imerso, sobretudo, do período de sua maior produção das artes visuais, também, das vertentes culturais e de uma nova sensibilidade à qual o artista se filiou. Ao longo das leituras e sobretudo dos encontros organizados em sessões no formato do webnário Lula Côrtes e a Imagem, outras perguntas surgiam e algumas respostas eram edificadas e outras esmaecidas, conforme depoimentos tanto dos (as) convidados (as) quanto do público presente eram emitidos. Esses encontros foram ricos para ampliar nossa rede e trazer para a roda de conversa pessoas que conviveram com Lula Côrtes, a exemplo de Paulo Klein, Jarbas Mariz, Aluísio Finazzi, Teresa Benassi e aquela amiga de Olinda). O evento pretendeu estimular reflexões sobre a trajetória de Côrtes no campo das artes visuais e sobre os contextos da criação artística no Recife entre as décadas de 1960 e 1990. Com a participação de diversos pesquisadores do campo da História e das Artes Visuais, como Durval Muniz de Albuquerque, Joana D’Arc Lima, Nemo Côrtes, Flávio Weinstein, Felipe Aretakis e Raul Córdula. As temáticas selecionadas foram: 1) Lula Côrtes, trajetória e vida (Nemo Côrtes); Sociabilidades culturais no Recife – anos 60 e 70 (Felipe Aretakis); A imagem, o real e o simbólico (Durval Muniz de Albuquerque); O campo artístico na cidade do Recife (Flávio Weinstein); Um olhar sobre a produção artística do Lula Côrtes (Raul Córdula); Anos 1970 e 1980: O Recife e as Artes Visuais (Joana D’Arc Lima).

Por último o trabalho de campo se desenvolveu com base em visitas aos acervos que contém obras visuais desse artista. Selecionamos três arquivos privados. Investigar a produção artística (pintura, desenho, gravura) do artista Lula Côrtes em diversos acervos – aqueles mais íntimos bem como outros acervos privados que se relacionam com o artista de maneira afetiva, seja pela amizade e outros sentidos e significados, cito: Acervo de Avir Mesel Côrtes, Kátia Mesel, Alcione Móes, Nemo Móes Côrtes, Alga Móes Côrtes e Manuel Cesário Ferreira Pinto.

Das vontades do projeto inicial e das errâncias do caminho. 

Desejávamos pesquisar os supracitados acervos em busca do mapeamento de sua produção visual, cujos dados possam ser empregados na construção de um quadro de identificação com as referências principais e breves histórias biográficas das obras. Queríamos pesquisar a documentação escrita registrada nas páginas de jornais, folders, convites, catálogos sobre exposições e os comentários das obras, textos críticos, de parede entre outros. Levantar fotografias pessoais e de vistas de exposição que se relacionem com a temática dessa pesquisa. Escrever pequenos verbetes sobre cada uma das exposições – recortes de comentários críticos e depoimentos com pessoas que se envolveram nesse processo.

Para chegar próximo ao processo criativo do artista e pensar na questão como Lula Côrtes criava, inventava e representava mundos por meio da linguagem visual, pretendíamos pesquisar vestígios (incluindo fotografias, depoimentos, cartas, ranhuras…) nos diversos acervos que possam nos dar pistas para chegarmos próximos/as do processo criativo do artista.

Na busca de ampliar nosso olhar sobre o artista realizamos um levantamento bibliográfico de estudos sobre o artista de maneira geral, algumas entrevistas dadas por ele e alguns vídeos entrevistas. Além da realização de entrevistas orais de memória sobre o artista e sua obra visual com as e os detentores da guarda dos acervos investigados. 

Com efeito os desejos sempre são maiores e são, as vezes, mais ousados  que conseguimos realizar na prática. A vida percorre caminhos curvos e entramos por vezes em labirintos tortuosos. Nos faltou tempo e perdemos tempo. Nas palavras de Córdula, O tempo não pode ser visto apenas como uma sequência de dias e meses, ele é curvo, plástico e pegajoso. O que vemos são pedaços do tempo, movimentos da vida, segmentos de histórias e ações que revelam a realidade de uma forma fragmentada, aquela que mais conhecemos. (Córdula, s/d). Assim, juntamos os fragmentos de uma vida e os colocamos em conexão, como um mapa da existência poética e visual de Lula Côrtes. Apresentamos aqui os resultados da pesquisa, o que foi possível traduzir em palavras/textos, em narrativas visuais e em disponibilização documental para outras investigações.

Neste momento, apresentamos um mapeamento – uma cartografia – de três acervos privados. Construímos fichas catalográficas que carregam informações sobre as obras. Organizamos uma exposição virtual, intitulada Atípicos e seus desvios de cor com recurso de audiodescrição a fim de garantir o acesso para pessoas cegas e com baixa visão. Elaboramos textos narrativos das pesquisadoras. Disponibilizamos vídeos contendo as sessões dos Webinários; fragmentos de algumas das entrevistas realizadas, uma sessão com fontes de pesquisa (indicações de textos) e uma lista de entrevistas dadas pelo artista Lula Côrtes em um endereço eletrônico criado pelo projeto para se tornar um portal de acesso ao imaginário de Lula Côrtes.

O que sobrou e transbordou dessa experiência e que lateja nas entrelinhas e nos espaços em aberto dos resultados finais: afeto, amizade e desejo de continuar pesquisando e olhar para essa trajetória minimamente contada aqui como uma experiência que devemos trazer para nosso tempo para quem sabe, ela, possa nos ajudar a viver nos nossos dias com mais humanismo e psicodelia à nordeste. 


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