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Lula Côrtes, pintando com as palavras – Karuna Sindhu

Era o ano de 2009. Em seu apartamento, na beira-mar de barra de Jangada – quase dentro do mar – numa entrevista para o jornalista e escritor Cristiano Jerônimo, Lula Côrtes contou:

Eu não sei escrever. Começa aí a história. Então eu comecei a pintar. Quando eu comecei a escrever poemas e pintar diariamente, eu lia muitas fábulas antigas, o universo infantil. Na época da minha infância não existia a televisão, então o grande portal para a imaginação vinha da leitura. Como deveria ser até hoje. Então eu pinto as cenas que eu imagino. Eu pinto com as palavras. [i]

Essa polissemia artística de Lula Côrtes permeava o seu cotidiano, marcando os seus percursos criativos e alinhavando uma relação entre o pintar, o escrever, o compor e o cantar – intrínseca à sua produção.

Há telas, pintadas por Lula Côrtes, espalhadas “a perder de vista”. Amigos e amigas, fãs, admiradores dos seus traços e cores, colecionadores e compradores as possuem guardadas.  

Buscando delinear apontamentos acerca dos modos de produção e circulação das pinturas de Lula Côrtes, realizamos entrevistas com três das pessoas mais importantes na vida do artista, proprietárias dos acervos visitados. As entrevistas tiveram caráter de conversa, dando-nos acesso ao conhecimento de anseios particulares de Lula em relação à pintura. Contaram-nos sobre a convivência com ele; sobre criar, amar e lidar com os desafios de uma vida dedicada ao fazer artístico, seja em São Paulo, seja em Pernambuco, ou mundo afora. Para Lula Côrtes, o campo artístico foi imiscuído da intimidade com amigos, amigas, parceiros e companheiras. 

Havia uma mola-mestra na sua forma de viver, e essa força motriz talvez tenha sido a curiosidade, aliada ao ímpeto para deixar-se sempre em movimento, constantemente trazendo-se novos desafios artísticos. Autodidata, Lula Côrtes pintava por inspiração, mergulhado no prazer de sentir o cheiro da tinta e de produzir uma nova obra, para, muitas vezes, nem se demorar a contemplá-la. Apaixonava-se por pouco tempo pelas suas telas. Vendia-as com o desprendimento de quem pinta para o mundo, pelo deleite de pintar, sem imbuir a sua produção de um preciosismo comum aos grandes salões de arte.

A valoração dada por Lula Côrtes às suas pinturas era definida pela relação afetiva ou profissional com a pessoa que a receberia, fosse comprando-as, ganhando-as ou trocando-as em favores. Dessa forma, as telas de Lula passaram a circular agenciadas por necessidades ocasionais do artista, numa troca intermediada, quase sempre, por ele mesmo. As telas que pintava, dentro do conjunto da sua produção artística, em alguns períodos mais que em outros, ganharam sentido efetivo de organizadores financeiros. Apesar de movido pela vontade de criar, experimentando técnicas novas que descobria em seus percursos, investindo em utilizar os melhores pincéis e as melhores tintas, Lula pintava para vender as suas telas, e, com isso, viver da sua arte, ou, escrevendo a esse respeito com uma frase mais parecida à sua forma de ser: viver da arte por viver com arte. 

O desejo de ser reconhecido como um artista dentro do campo das artes visuais esteve sempre presente nele. Embora tenha realizado exposições de suas pinturas e desenhos, inclusive fora do Brasil, Lula Côrtes não se sentia satisfeito com a apreciação feita, de forma geral, e, especialmente, por seus pares. Estabeleceu parceria criativa com muitos músicos, entretanto, expressou, em entrevistas, anotações pessoais e conversas, o descontentamento com o grau de reconhecimento que recebeu pela sua persona artística como artista visual. Considerando a intensidade com a qual pintava e desenhava, a preocupação em ter boas ferramentas (tintas, pincéis, telas, papel), o compromisso em dar vida e finalizar cada quadro, e, sobretudo, o fato de considerar-se um bom pintor[ii] – davam ao próprio Lula – uma dimensão bastante significativa da sua produção em artes visuais. 

Um parceiro artístico, e, conforme lê-se aqui, também um admirador seu, Raul Córdula, nome reconhecidamente relevante nas artes plásticas pernambucanas, assim o descreveu: 

A obra plástica de Lula Côrtes, paralela à sua obra musical, transita por esta vertente que parece ser a coxia do mundo – ele é mais conhecido como artista do palco. Mais ainda: ela transita por seu mundo interior, por seus abismos, sua poesia bárbara e brilhante que se confunde com sua maneira de ser, seus signos próprios, seus meios e modos de se relacionar com a vida e com o outro (CÓRDULA, 2005, p.59).[iii]

 Nesse mesmo artigo, Raul Córdula comenta sobre a qualidade da técnica de Lula: “os desenhos que ele fazia nos anos 70 possuíam uma alma psicodélica. Mas não eram repetições copiadas de revistas americanas, seus traços fluíam com uma elegância e uma habilidade sem par”. 

Voltemos aos acervos, para agora tentarmos trazer até vocês pinceladas que revelam a presença da pintura no cotidiano de Lula Côrtes. Pinturas em óleo, aquarela, nanquim e grafite; poesias; fotografias; matérias de jornais sobre lançamento de discos, noticiando a participação de Lula em festivais de música, ou alguma entrevista com ele; cartazes de shows e catálogo de exposição de suas pinturas. Preciosos e numerosos esboços em grafite. Postais recebidos de parentes, outros, escritos por Lula Côrtes, e que ficaram para serem enviados. Esse conjunto de itens compõem o primeiro acervo visitado pela equipe de pesquisa do mapeamento nomeado de Atípicos, em alusão à série homônima de suas pinturas. Trata-se do acervo pessoal do artista, no qual existem também muitas anotações particulares. Bilhetes, pedaços de papel encontrados entre cartas, envelopes, cartões, convites, flyers, e esboços quase aleatórios, traços que brotavam de suas mãos na verve do impulso criativo – constantemente. Representam os documentos que guardam em si marcas de uma época. A troca de cartas em papel, escritas à punho; os bilhetes de visitas que chegavam à casa de Lula e não o encontravam; fotografias reveladas; a comunicação por fax, desenrolada com hiatos temporais algumas vezes de anos.   

Debruçamo-nos sobre o seu acervo pessoal, com a intenção de mergulharmos no universo afetivo e particular de Lula Côrtes para compormos o nosso esboço do retrato do artista, enquanto pintor. Visto que um mapeamento, quando compartilhados os seus resultados, é também uma apresentação, indagações a respeito do lugar da pintura na identidade artística de Lula Côrtes – mais conhecido pela sua carreira musical – moveram a operação da pesquisa realizada aos acervos. 

Um arquivo, lugar que nasce da desordem,

porquanto desmesurado, invasivo como as marés de equinócios, as avalanchas ou as inundações. A comparação com fluxos naturais e imprevisíveis está longe de ser fortuita; quem trabalha em arquivos se surpreende muitas vezes falando dessa viagem em termos de mergulho, de imersão e até de afogamento… o mar se faz presente; aliás, repertoriado em inventários, o arquivo permite essas evocações marinhas na medida em que se subdivide (FARGE, 2017, p.11).[iv]

 O mergulho ao universo particular de Lula Côrtes, operado com o olhar e com a distância requerida pelo ofício da pesquisa, nos levou ao encontro de agendas do artista. Dito pelo próprio Lula que pintava com as palavras, estas, escritas em agendas que eram ora diários, ora organizadoras de rotina – cumprindo a função de registro de telefones, endereços, datas de aniversário, compromissos, e, também, de sensações, anseios e sentimentos – nos revelaram um artista, comprometido com a sua prática de pintar, diariamente. 

Encerramos esse esboço deixando com vocês algumas anotações do artista enquanto pintor, tais como foram escritas por ele. Escolhemos aquelas que revelam hábitos, como o de acordar cedo e pôs-se a pintar, durante as manhãs. Outras, que trazem os preços das telas vendidas. Não foi possível estabelecer um padrão de precificação adotado por Lula para as suas telas, tampouco os critérios usados para mensurar o valor financeiro dessas. Há, sim, o registro das etapas de sua produção artística. Ele faz menção aos seus desafios criativos, ao tempo gasto pintando, assim como o nome de quem realizou a encomenda. 

Lula Côrtes gostava de indicar a técnica empregada. Chama à atenção o fato de que as suas criações, muitas vezes, já nasciam com nomes. Ele registrava o título da tela, antes mesmo de pintá-las.   

Consultando essa agenda encontrada em seu acervo pessoal, ao chegarmos na seção de contatos, encontramos os nomes de artistas – uns já bastante conhecidos no cenário nacional, outros, na cena pernambucana da música; seus endereços e telefones. As dinâmicas relacionais de Lula, cujas marcas são percebidas em sua produção artística – contratos, produções, shows, turnês, exposições, publicações – podem ser acompanhadas através de bilhetes recebidos – alguns soltos entre papéis avulsos, outros, grampeados nas folhas da agenda. Ele tinha o costume de fazer anotações sobre as visitas recebidas ou estar sozinho; sobre seus trajetos, encontros e destinos. 

Selecionamos uma sequência de dias próximos no calendário, para que nos fosse possível compartilhar um esboço do cotidiano do artista. O período escolhido foi aquele no qual Lula Côrtes escreveu com maior frequência em sua agenda, esse objeto de registro diário.

O ano era 1998. 

1° de janeiro

Escrevi para o livro. Nemo veio me visitar. (…) à noite, tornei a escrever. Sonho que ainda em janeiro vou terminar o livro.

 4 de janeiro

Vendi –> Mary 

“O guardião do abismo”

90X60 óleo / 600,00

Recebi: 200,00 (Fiado: 400,00)

 5 de janeiro

Não pintei, não escrevi. Passei uma tarde péssima.

 6 de janeiro

Acordei muito cedo. São 5 horas. Vou pintar. 

Cantei na Soparia

 17 de janeiro

Acordei muito cedo. Estou pintando novamente, continuo o trabalho para a exposição. Minha música tocou na Transamérica.

 25 de janeiro

Às 6h Alex veio aqui. Eu já estava pintando. Se não trabalhar vou pirar de vez. Pintei durante toda a manhã “Um coqueiral” (óleo).

 2 de fevereiro

Continuo a pintar “O mangue 2”

Estou muito disperso, passo horas andando e não consigo trabalhar com continuidade outra vez. O quadro que é bom, nada!

 4 de fevereiro

Continuo a pintura do “Mangue” quadro da mãe de M. (muito trabalho!)

10 gravuras para Newton – 350,00 reais

Hesíodo -> 60 reais por duas aquarelas / p.g.

 8 de fevereiro

Estou pintando o porto à noir. “Um porto imaginário”. Óleo.

Terminei o quadro.

Folga à tarde.

 10 de fevereiro

Preparei 3 telas para pintar.

Pintei “Os juncos” da Lagoa do Náutico”.

Preparei o painel para a praça.

 Recado escrito à mão em pedaço de papel, grampeado no dia 11 de fevereiro:

“Lula, um abraço.

Estive te procurando. Por favor, passe um fax especificando o material que você precisa para fazer um painel. Urgente. Caso seja possível, me telefone.”

 14 de fevereiro

Estou só. Vou procurar pintar – durante todo o dia. Não estou esperando nada de especial – só trabalho. Escrevi um pouco. Saí para relaxar, mas foi pior. Não existe nada na rua que não seja comum, e isso não me interessa mais. Voltei e pintei “Um estudo para as queimadas” (um tronco no fogo) óleo. Vou pintar “A queimada” óleo.

 28 de fevereiro

Shopping

Cezário

4 horas da tarde: cais do porto

Vendi 5 telas – 600,00 cada.

 9 de março

Acordei às 7h.

Estou precisando pintar – a tela está preparada e eu não me concentro o bastante – preciso pousar aqui – habitar este espaço novo. 

São 11 horas.

 19 de março

Pintei “O homem fora de si”. Vendi por 2.000,00.

Vou ao médico, não estou me sentindo bem.

Vou ao bar do poeta.

O bar não existe mais.

[i] Entrevista publicada no blog http://cristianojeronimo.blogspot.com/2016/10/lula-cortes-eu-pinto-as-cenas-que-eu.html em 06 de outubro de 2016.
[ii] Informação trazida aqui com base na entrevista realizada no dia 21 de agosto de 2021, ao amigo e proprietário de um dos acervos pesquisados, Manuel Cesário Ferreira Pinto.
[iii] CÓRDULA, Raul. Artes Plásticas: Lula Côrtes, demônio do bem. Recife: aRecifes – Revista do Conselho Municipal de Cultura, ano 30, n° 10, dezembro de 2005, p. 59 a 62.
[iv] FARGE, Arlete. O sabor do arquivo. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2017.

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